O busto (roubado) de Presciliano Silva

Um busto é uma espécie de lápide. Nele repousa, mais que no jazigo, aquele que foi ilustre, aquele que perdura. Nele não repousa, em verdade, mas resiste. E é ele, o busto, que pode representar o extinto sem morbidez, sem agouros, sem maus presságios. Diante de um busto não há tristeza ou medo, mas nostalgia, admiração, reconhecimento. E os jovens não precisarão entrar num cemitério para se surpreender com as gestas de figuras históricas, até então desconhecidas para eles, da estirpe de um Durval de Morais ou um Carlos Chiacchio, Manoel Querino, Theodoro Sampaio, Arthur de Salles, dentre tantos outros ínclitos baianos. A frase lapidar, num busto, ressoa bronzeada, e não escura, empoeirada, avoenga, cheirando a corvos e ciprestes.

No ano de 2006 o busto – feito de bronze – de um dos maiores pintores baianos de todos os tempos, Presciliano Silva, foi roubado. A homenagem póstuma ficava numa área muito “visada” do centro de Salvador, espécie de jardim ou praça, em frente ao Palácio da Aclamação, no caminho para o Campo Grande, bairro tradicional da capital baiana. Não se pode culpar apenas a marginalidade ou o vandalismo: o tal jardim suspenso é, em verdade, um vale de lágrimas, mijódromo dos mais freqüentados, motel para mendigos e/ou pinguços, com mato alto por todos os cantos, excrementos oriundos de toda a fauna brasileira, mas principalmente do “sujeito homem”, e passagem obrigatória das ratazanas com obesidade mórbida que, preguiçosas e quase deficientes, precisam fazer a travessia Forte de São Pedro – Passeio Público.  Isso para não falar no deserto que virou aquele sítio, como diriam os portugais, de fazer gozar um beduíno, pois até quem pedinchava por ali, achou que o local havia se tornado inóspito para o ofício.

Mas onde é que fica mesmo esse jardim suspenso? Sim, leitor dessas linhas tortas, o jardim fica diante do Palácio da Aclamação, que funciona, hoje, como um cerimonial, onde acontece tudo o que há de mais sofisticado em matéria de arte paulista – leia-se instalação e quejandos –, e onde o corpo de Jorge Amado foi velado, em 2001, dentre tantas outras oficializações. Isso hoje, porque ontem o Palácio da Aclamação era muito mais: durante 55 anos foi a residência oficial dos governadores da Bahia. Há um jardineiro desempregado em cada canto da cidade de Pedro Archanjo, com seu povo mascavo pedindo a reabertura da tenda de Lídio Corró, o santeiro. Resta à prefeitura colocar avisos sobre a ex-grama, com o seguinte alerta: “Não pise no mato”. Afinal, as vacas magras estão aí.

No ano de 1966, portanto, um ano depois da morte do pintor e professor, inaugurava-se o busto, executado pelo distinto escultor Ismael de Barros – promoção da Histarte. No pedestal, a seguinte inscrição: “O dom de perdurar é apanágio dos santos e dos artistas”. Santo, nosso Presciliano certamente não era, graças a Deus. Sobra-lhe o epíteto de artista. Pois bem, teria sido ele outra coisa? Senão vejamos:

Presciliano Silva nasceu no dia de 17 de maio de 1883, à casa 162, Rua das Mercês, Salvador. Assentamento: Presciliano Athanagildo Isidoro Rodrigues da Silva. Em 1896 ingressa na Escola de Belas Artes e Liceu de Artes e Ofícios, curso regular e curso particular, respectivamente, este com o Prof. Manoel Lopes Rodrigues. Em 1902 conclui os cursos, obtendo medalhas de ouro e prata, em desenho e escultura, na “Belas Artes” e no “Liceu”; Prêmio Caminhoá (viagem de estudos à Europa). Em 1905 fixa residência em Paris, com estágio na famosa Academia Julien. Volta ao Brasil três anos depois e fixa residência no Rio de Janeiro, onde realiza primeira exposição na então Capital Federal. O governo adquire a tela “Interior Bretão”. Em 1912 volta à Europa, fixando-se em Concarneau, Bretanha, passando menos tempo em Paris. Em 1915, decora e pinta a nave central e o zimbório da Igreja da Piedade. Dois anos depois, olha o Presciliano já no Palácio da Aclamação? Decorou e pintou o Salão Nobre e a Sala de Música do palácio. Em 1928 torna-se professor da Escola de Belas Artes. Em 1941, medalha de ouro no Salão Nacional de Belas Artes, com o trabalho “Abstração”. Em 1947 conquista a Medalha de Honra do Salão Nacional de Belas Artes, com o trabalho “Romeiro”. No ano posterior ganha a Medalha de Ouro Governador do Estado de São Paulo, com “Interior do Convento de São Francisco”. Em 1951 torna-se catedrático da Escola de Belas Artes e, em 1960, Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia. Em 1963, várias são as homenagens aos seus 80 anos de idade: medalhas e retrospectivas. Falece em 1965. Em 1966, o busto... Em 1969, inauguração, em Itapagipe, da Escola Presciliano Silva, por ato do governador Luiz Viana Filho. Em 1974 é publicada sua biografia, com estudo crítico de Clarival do Prado Valladares, iniciativa da Fundação Conquista, livro ricamente ilustrado, publicado no Rio de Janeiro. Em 1983 o Governo do Estado, a Universidade Federal da Bahia, a Academia de Letras da Bahia e o jornal A TARDE fazem homenagens ao centenário do grande desenhista e pintor de interiores que foi o professor Presciliano Silva. Importante ainda lembrar o encomiástico registro manuscrito que o pintor recebeu das mãos de Ruy Barbosa, em 1920, por conta da obra “Oração da Tarde”.

Presciliano Silva é nome de rua no Rio de Janeiro. Aqui em Salvador, encontram-se suntuosos condomínios com nomes de artistas de fora: Fellini, Arthur Moreira Lima e até Andy Warhol, na Ladeira da Barra. Isso quando não tascam lá o universal francesinho “Condomínio Flamboyant”. Não tenho notícia nem mesmo de uma mansarda com o nome do pintor baiano.

Mas quem quiser ver o homem e não a obra, só há mesmo uma opção, atualmente: Presciliano Silva continua intacto no Campo Santo, bairro da Federação.

Salvador, Bahia.

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