expoart
colunistas >> 
Literatura & Cinema >> 
  Henrique Wagner
Teatro baiano >> 
  Henrique Wagner
Artes Plásticas >> 
Obs: A Expoart apenas publica artigos enviados por seus usuários e colunistas.
O conteúdo dos artigos e as opiniões emitidas pelos seus autores são de sua exclusiva responsabilidade.
Coluna >> 
 

Pólvora e Poesia

Sempre fico bastante excitado quando me encontro prestes a assistir a uma peça do Fernando Guerreiro. E tenso. Certamente mais tenso que o próprio diretor. Acontece que Fernando é o único profissional do teatro baiano, hoje, que arrisca tanto, a cada trabalho, e sem rede de segurança lá embaixo. Não há uma peça dele que sequer se aproxime da outra, em linguagem da encenação. O segredo é o da escalação da Seleção Brasileira, na final da Copa do Mundo: jamais se sabe o que vai acontecer. Fernando Guerreiro ousa o tempo todo, está profundamente ligado à forma de contar uma história, sem, no entanto, perder os pés numa egotrip barata, deixando o público sem sinopse para contar em casa ou entre os amigos. Em Shopping and Fucking, por exemplo, ele fez de um apartamento inglês um carro vermelho em algum lugar muito quente da América.

Pólvora e Poesia, premiado texto de Alcides Nogueira (telenovelista brasileiro que, por esse texto, venceu o Premio Shell 2001), começa, em Salvador, dentro de uma igreja. Primeira “estripulia” de Fernando. Trata-se de colocar o amor e a loucura de Paul Verlaine, homem casado e com filho, e Rimbaud, poeta marginal, futuro contrabandista de armas etc., dentro da “casa de Deus”, um Deus que não tolera que seu nome seja dito em vão. Por sodomia Oscar Wilde foi parar em Dartmoor...

Segunda “estripulia” de Fernando: seu palco é uma mesa, que depois vira uma espécie de pista de skate, tão logo Verlaine (Caio Rodrigo) puxa um gatilho de debaixo do tampo, que faz com que o móvel praticamente desabe, no meio, formando um “v”, depois de um estridente barulho. A peça realmente começa.

Mas há que registrar o silêncio embrionário do espetáculo. É incômodo, nos faz sentir calor, desconforto, coceira no corpo, vontade de gritar. Em verdade, o silêncio de cerca de dez minutos, enquanto Verlaine transita nervoso, de lado a lado, fumando seu cachimbo, é mais uma nota dissonante da harmonia do espetáculo, marcado pelo barulho. Do outro lado da mesa, Rimbaud (Talis Castro), vestindo a bata de uma foto famosa que registra o poeta já na África – primeiro anacronismo da peça ou uma deliberada mistura dos anos, na memória? –, mais inquieto do que nervoso, aumenta o silêncio inicial ao fazer par com seu amante, calando-se do mesmo modo incontido. A longa e estreita mesa da Santa Ceia, que os separa, a mesa familiar, do almoço aos domingos, está prestes a ser implodida.

Se no texto de Alcides Nogueira o proscênio é usado constantemente para “enfrentar” o espectador, na montagem de Fernando, que vai mais longe ainda, há apenas proscênio: o espaço entre os atores e o público, dividido entre cadeiras e duas arquibancadas, é de, no máximo, metro e meio. Ficamos, portanto, diante de uma forma explícita, indecorosa, de contar uma história: por meio dos poros, numa lente subjetiva, invasiva, em close-up constante. Assim, Verlaine não se defende, o tempo inteiro, diante do júri, apenas, mas se defende também do público, como se carregasse a letra escarlate no peito, andando por entre uma longínqua aldeia da Nova Inglaterra de Hawthorne.

Fernando é baiano de Salvador. Pinta com cores fortes, tudo o que realiza em teatro. Assim é que o fundo musical escolhido pelo autor da peça é trocado por intervenções de uma guitarra elétrica, nervosa, tocada ao vivo pelo diretor musical Juracy do Amor – segundo anacronismo da montagem baiana ou deliberada mistura dos anos, na memória? Verlaine segue usando roupas de época. Alcides havia escolhido Chopin... E se achei que Fernando Guerreiro havia mudado o início da peça (Alcides Nogueira põe um beijo longo entre os dois poetas, ao som de Chopin, como abertura do texto) por decoro... Hèlas! Ledo – porque é sempre ledo – engano! No meio da peça – e da mesa – os dois homens se atracam, se beijam, se despem, se amam efusivamente.

O texto é feito, praticamente, de dois monólogos: o encenador tem de dar um jeito de sincronizar as falas. Verlaine se encontra em três planos de consciência e discurso, fazendo lembrar o Rashomon de Akutagawa: defende-se, em um julgamento; conversa com Mathilde, sua esposa; encontra Rimbaud. Do outro lado da quadra (eu sentei numa cadeira ao meio da igreja, perto da rede do tênis de mesa), o poeta das Iluminações, mas também da temporada no inferno, vive as falas diretas a Verlaine, certo delírio poético e o encontro com Mathilde, quando se hospeda à casa de seu amante. Há ainda uma curta passagem por Bruxelas, em que os poetas vacilam quanto à vida que pretendem levar, juntos. Até alcançarmos o tiro dado por Verlaine no pulso de Rimbaud – depois do mesmo tiro apenas lembrado, pelo poeta –, já sabemos de que lado estamos: dos dois. O embate é justo. Há um homem atormentado porque ama um jovem poeta genial, mas é casado e funcionário público, além de poeta consagrado. E há um adolescente genial, apaixonante, inquieto, intenso e selvagem, apaixonado pelo amigo e pela vida. Apenas a mesa, imensa, é injusta. E o revólver, talvez.

Fiquei muito bem impressionado com a atuação de Caio Rodrigo. A afetação de seu Verlaine está na medida certa. Pensei imediatamente em Javier Bardem, monumental, dando vida ao sofrido escritor cubano Reinaldo Arenas. Os olhos de Caio são assustadores, em determinados momentos, e sua voz jamais vacila. Ao contrário de Rimbaud, Talis Castro tem idade, sim, e começa bem. Percebe-se a incipiência, mas é perceptível, igualmente, a capacidade do ator de crescer para além dos personagens marcantes.

Fiquei um tanto incomodado com a figura meio acrobata do Rimbaud de Fernando-Talis, pulando, pendulando, correndo. O Rimbaud inicial também me incomodou bastante, porque “entra de sola”, já gasto, gritando muito, enquanto o público estava frio, ainda. O dramaturgo é mais paciente com o público, dando-nos o tempo, que julgo necessário, para entrar na história e fazer de qualquer densidade uma verossimilhança. E há ainda o tom mais enfant gâté que enfant terrible, do Rimbaud de Fernando Guerreiro. Trata-se de uma decisão. Eu gosto de pensar no poeta menos mimado, menos menino.

Pólvora e Poesia é exatamente o que “explica” o título – a única surpresa que não se deu. Quente e fluido, lava de vulcão. O espetáculo é mais ousado pela encenação do que pelo texto. Os estampidos nos levam até em casa com todo o magma de dois poetas dirigidos em alta velocidade.
E a temporada é curtíssima, é claro.


Para comentar, você deve utilizar sua conta do Facebook, Hotmail, Yahoo ou AOL.

12/12/2010 20:19:26 - Não entendi...
Meu caro Henrique você gostou ou não da peça? Vale a pena? Fez uma volta danada para falar do diretor/locutor...Fez todo o rapapé, mas ficou algo no ar. Fala aí brother na real!
Postado por: luciano Damasceno
13/12/2010 02:56:46 - Gostei
Sim, Luciano, gostei da peça, mas com as restrições assinaladas no texto acima. Abç.
Postado por: Henrique Wagner
13/12/2010 14:52:57 - Espaço
Achei a peça barulhenta demais!!! E em alguns mmomentos os atores, principalmente o que faz Verlaine, pisaram em meus pés. Acho que o diretor deveria ter resolvido melhor a questão do espaço. Nem sempre uma grande ideia pode ser sustendtada. Nem sempre vale a pena ou é bem realizada.
Postado por: Arthur Benevides
13/12/2010 21:28:01 - Não gostei
Não gostei do texto - pobre - não gostei da direção - desleixada - e não gostei do ator que faz Rimbaud. Só gostei de Caio Rodrigo e de alguns momentos da peça. E detestei o barulho, os gritos dos atores etc. Peça ruim. Mau gosto do crítico.
Postado por: Isabela Rodrigue
14/12/2010 03:53:39 - Besteirol, rápido!
Nossa, Henrique, a peça é muito ruim!!! Atores ruins, texto ruim, desconforto para o público, calor no "teatro", enfim.. Não gostei de nada! Talvez seja a pior peça de Fernando Guerreiro, dentre as tantas peças ruins que ele dirigiu. Não adianta, é melhor ele ficar no besteirol mesmo...
Postado por: Cristiane Simões
14/12/2010 09:10:43 - Ouço coisas boas e ruins
Já vi algumas peças de Fernando Guerreiro. Ele não precisa mais provar se é bom ou ruim.Inclusive, precisa parar de achar que teatro baiano só ele, mais quem ele gosta, sabem fazer. Geração nova está aí vindo com tudo! Ele acaba usando a ousadia em seu favor, mas não vejo muito motivo de tanta badalação em Pólvora...até vi que ele escreveu no facebook que é algo experimental, vejo a peça dessa forma também. Exagero quem acha que é maravilhosa.
Postado por: Bruno almeida
14/12/2010 21:49:36 - Detesto Bauman
Vivemos mesmo os tempos líquidos de Bauman: algo experimental, declaradamente experimental, suscita imenso interesse e badalação na estréia e dias seguintes... Por essas e outras que detesto a chamada pós-modernidade. Inclusive Bauman: detesto Bauman!
Postado por: Mariana Souza
15/12/2010 08:05:06 - eu gostei e ponto.
SIMPLISMENTE, LINDA ENCANTADORA SURPREENDENTE EMOCIONANTE...ENTÃO NÃO É SIMLES É UM SOCO NO ESTÔMAGO O ESPETÁCULO ESTRELADO POR ESSAS FIGURAS AINDA SOB O VÉU DO DESCONHECIMENTO DO GRANDE PÚBLICO, DIRIGIDOS POR GUERREIRO BRILHAM MOSTRUOSAMENTE NÃO DA PRA SER SIMLES E DIRETA NO COMENTÁRIO PORQUE TODA A TRAMA É VOLUPTUOSA TODO O ESPETÁCULO É TORMENTA É PÓLVORA E POESIA...SIMPLESMENTE amei.HÁ...BIFF PARABÉNS VC ESTÁ ALUCINANTE UM ESPETÁCULO Á PARTE.
Postado por: MILENA SAMPAIO
15/12/2010 11:09:20 - confuso...
Caro Henrique,graças a sua crítica fui ver o espetáculo AS VELHAS, fiquei encantado...entendo quando vc diz que é um espetaculo de verdade...atores,direçao e texto precisos.Um resgate ao nosso teatro cheio de tantas "experimentaçoes".Obrigado pela dica.Fui ver Polvora e poesia...gosto,mas conhecendo a trajetoria desses poetas.nao podia esperar menos do que Fernando conseguiu...
Postado por: André Pimenta
15/12/2010 18:30:52 - Quem é Biff meu "deuso"?
Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Ser amiga de "Biff" é uma coisa, achar o espetáculo lindo, emocionante...é outra coisa. O espetáculo é ruim gente! Deixem de loucura desmedida.
Postado por: lucas carvalho
16/12/2010 03:35:23 - Biff?
Agora eu tb fiquei curioso: quem diabos é Biff???
Postado por: Henrique Wagner
21/12/2010 11:16:30 - O Melhor???
Seus referentes de teatro são pésimos. Dizer que Guerreiro é o melhor.... bla bla bla!!!!!!!! O espetáculo é horroroso, esperemos o jogo do Bahia. Pena!
Postado por: Pedro Angú
23/12/2010 17:37:07 - curiosidade...
Curiosa em saber quem te banca para escrever de maneira tendenciosa? Percebo que só falou bem de 2 diretores que por coincidência tb a crítica do jornal A Tarde tb de maneira tendenciosa falou super bem dessas peças e agora tb foram indicadas ao braskem.
Postado por: Lenira
23/12/2010 17:42:15 - curiosidade 2
Só faltou falar de 1 para a tríade das comadres vaidosas do teatro baiano se completar: a comadre secretária de cultura do esatdo e dona do teatro Vila Velha. Pq a comadre sonsa que faz política baixa em todos os setores e se esconde na Escola de Teatro e a comadre histérica que faz próprio marketing em programa de rádio vc enalteceu. Quando as comadres vão entender que precisam dar espaço para o novo? Nunca! É a morte para elas.
Postado por: Lenira
28/12/2010 17:27:20 - Pólvora e Poesia
Não gostei. O texto é primário, repleto de frases de efeito e de pouco impacto - exceto quando insere trechos dos poemas escritos pelos poetas representados -; excessivamente narrativo, o texto acaba sendo super-valorizado em relação à encenação (não é fácil trabalhar com esse tipo de texto e torná-lo interessante na concretude da cena; a encenação consiste numa utilização histérica do espaço, tem problemas de ritmo, o que faz do espetáculo às vezes monótono; há muito barulho, o trabalho dos atores é monocórdico e, especialmente Caio, faz uma composição exageradamente afetada, repleta de tiques que fragilizam o trabalho dele; o que era para ser intenso transforma-se em "pseudo-viceralidade"; Talis resvala no mesmo erro, mas ainda apresenta uma interpretação mais preocupada com variações ou modulações. Enfim, senti falta nesse espetáculo de espaço para um pouco mais de sutileza e pausa, um momento de respiro... Sem isso, a peça sufoca e repele! Assim se deu comigo, pelo menos.
Postado por: Uendel
15/02/2011 13:10:15 - Apenas um admirador
Prezado HW, Sou executivo de multinacional, engravatado, metódico, racional etc. Em nada tenho a ver com o meio teatral, mas muito me interesso em assistir espetáculos, sejam eles no Brasil ou em terras estrangeiras. Cultivo em mim, talvez, um interesse de quem fez teatro amador em tempos de científico, não deixou que a coragem lhe tomasse e se encerrou atrás de uma mesa e cadeira confortáveis. Bom, sou espectador assíduo e leio bastante sobre. O que pude perceber em ti foi uma “leve” sensação de liberdade com as palavras por se tratar de um sítio virtual, meio ainda pouco regulamentado e erroneamente visto como “marginal”, “alternativo”.
Postado por: Marco Bonnati
15/02/2011 13:12:10 - Apenas um admirador (cont.)
O teatro baiano está, sim, em uma fase pouco profissional (talvez devido aos editais de baixo custo), mas percebo nos outros estados e países também uma tendência ao experimentar descompromissado, o que provavelmente os leve a concluir que estão protegidos de qualquer falta de perfeccionismo e/ou detalhismo. Mas isto não se torna um terreno fértil para agressões de baixo calão como, infelizmente, me deparei ao ler suas palavras quando buscava aleatoriamente os horários de apresentação de “Pólvora e Poesia” no Google.
Postado por: Marco Bonnati
15/02/2011 13:12:53 - Apenas um admirador (cont. II)
Fiquei profundamente triste ao constatar que uma pessoa como tu (com alta formação acadêmica), consegues destruir, de forma tão infantil, o esforço e o quase heroísmo que os artistas da tua terra levantam em nome de uma arte minimamente valorizada. Tens todo o direito de não gostar e expressar com paixão o seu não grado, mas lance um olhar mais zeloso sobre o que escreves, assim, conseguiremos absorver mais sobre a obra de arte em cartaz e menos os seus esforços em desmerecê-la. *Não falo pelo comentário desta peça em particular, mas por outros aqui postados. Abraços,
Postado por: Marco Bonnati
16/02/2011 04:52:43 - Formação Acadëmica
Marco, obrigado por ter lido um texto meu. Informo, apenas, que não tenho formação acadêmica alguma, quanto mais a "alta formação acadêmica"que vc disse constatar em mim. Abc.
Postado por: Henrique Wagner
16/02/2011 21:50:40 - Parabéns.
Prezado HW, fico extremamente feliz ao saber que pessoas como tu, conseguem atingir um nível cultural alto sem necessariamente passar por uma academia formal. Parabéns! Mas não havia constatado isso, apenas conclui baseado nas referências literárias com que recheias seus comentários. O que constatei, sim, foi a suas capacidade em "destruir (...)" (último post, a partir da 2a linha). Abraços.
Postado por: Marco Bonnati
26/04/2011 07:38:58 - Cada cabeça é um mundo...
Adorei ler os comentários. Essa variedade de cabeças é excitante. Mariana Souza detestando Bauman é ótimo. Cada cabeça é um mundo. E o mundo não tem cabeça.
Postado por: Aninha Franco
©2001 Expoart Serviços Ltda. Todos os direitos reservados.